CAPÍTULO I
ORALIDADE E LETRAMENTO
1. Oralidade e letramento como práticas sociais
Hoje, é impossível investigar oralidade e letramento sem uma referência direta ao papel dessas duas práticas na civilização contemporânea. Considerava-se a relação oralidade e letramento como dicotômica, atribuindo-se à escrita dos valores cognitivos intrínsecos no uso da língua, não se vendo nelas duas práticas sociais. Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, ambas são suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos, exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. Escrever pelo computador no contexto da produção discursiva dos bate-papos síncronos (on-line) é uma nova forma de nos relacionarmos com a escrita, mas não propriamente uma nova forma de escrita.
- A fala (enquanto manifestação da prática oral) é adquirida naturalmente em contextos informais do dia-a-dia, nas relações sociais e dialógicas que se instauram desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê.
- A escrita (enquanto manifestação formal do letramento), em sua faceta institucional, é adquirida em contextos formais: na escola.
2. Presença da oralidade e da escrita na sociedade
Quanto à presença da escrita, pode-se dizer que, mesmo criada pelo engenho humano tardiamente em relação ao surgimento da oralidade, ela permeia hoje quase todas às práticas sociais dos povos em que penetrou. O letramento não é o equivalente à aquisição da escrita. A escrita é usada em contextos básicos da vida cotidiana, em paralelo direto com a oralidade. Estes contextos são, entre outros:
- o trabalho
- a escola
- o dia-a-dia
- a família
- a vida burocrática
- a atividade intelectual
Devemos distinguir entre letramento, alfabetização e escolarização.
- O letramento é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários.
- A alfabetização pode dar-se, como de fato se deu historicamente, à margem da instituição escolar, mas é sempre um aprendizado mediante ensino, e compreende o domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e escrever.
- A escolarização, por sua vez, é uma prática formal e institucional de ensino que visa a uma formação integral do indivíduo.
Na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita são imprescindíveis. A escrita surgiu pouco mais de 3.000 anos antes de Cristo, ou seja, há 5.000 anos. No Ocidente, ela entrou por volta de 600 a. C., chegando a pouco mais de 2.500 anos hoje. A escrita é um fato histórico e deve ser tratado como tal e não como um bem natural.
3. Oralidade versus letramento ou fala versus escrita?
- A Oralidade seria uma prática social interativa para fins comunicativos, que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora;
- O Letramento, por sua vez, envolve as mais diversas práticas da escrita na sociedade;
- A Fala seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral, sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano;
- A Escrita seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria por sua constituição gráfica.
Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento, e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita.
4. A Perspectiva das dicotomias
A primeira das tendências, a de maior tradição entre os linguistas, é a que se dedica à análise das relações entre as duas modalidades de uso da língua (fala versus escrita) e percebe sobretudo as diferenças na perspectiva da dicotomia.
Dicotomias escritas
fala versus escrita
contextualizada descontextualizada
dependente autônoma
implícita explícita
redundante condensada
não-planejada planejada
imprecisa precisa
não-normatizada normatizada
fragmentária completa
5. A Tendência fenomenológica de caráter culturalista
As características centrais da visão de identificar as mudanças operadas nas sociedades em que se introduziu o sistema de escrita são:
Visão culturalista
cultura oral versus cultura letrada
pensamento concreto pensamento abstrato
raciocínio prático raciocínio lógico
atividade artesanal atividade tecnológica
cultivo da tradição inovação constante
ritualismo analiticidade
6. A Perspectiva variacionista
A fala e a escrita não são propriamente dois dialetos, mas sim duas modalidades de uso da língua, de maneira que o aluno, ao dominar a escrita, se torna bimodal. Fluente em dois modos de uso, e não simplesmente em dois dialetos.
A Perspectiva variacionista
fala e escrita apresentam
língua padrão variedades não-padrão
língua culta língua coloquial
norma padrão normas não-padrão
7. A Perspectiva sociointeracionista
Este modelo de perspectiva tem a vantagem de perceber com maior clareza a língua como fenômeno interativo e dinâmico. A perspectiva internacionalista preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando-os sempre com situados em contextos sócio-historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos inferenciais.
Perspectiva sociointeracionista
fala e escrita apresentam
dialogicidade
usos estratégicos
funções interacionais
envolvimento
negociação
situacionalidade
coerência
dinamicidade
8. Aspectos relevantes para a observação da relação fala e escrita
A língua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete, em boa medida, a organização da sociedade. Podemos observar que a construção de categorias para a reflexão teórica ou para a classificação são tanto um reflexo da linguagem como se refletem na linguagem e são sempre construídas interativamente dentro de uma sociedade.
"Oralidade e escrita são duas práticas sociais e não duas práticas de sociedades diversas. Afala tem sido vista na perspectiva da escrita e num quadro de dicotomias escritas porque predominou o paradigma teórico da análise imanente ao código." (pág.37).
A oralidade jamais desaparecerá e sempre será, ao lado da escrita, o grande meio de expressão e de atividade comunicativa.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. - 8. ed - São Paulo: Cortez, 2007.